Uma gota de versatilidade em meio a um mar de mesmice

    

Imagine que está assistindo a um filme. Nele, a história vai se desenvolvendo, os personagens desbravando sua jornada, você vê que, cinematograficamente falando, o conjunto parece bastante familiar: a fotografia possui traços conhecidos e o enredo esbanja um charme muito único. Enfim, você percebe a marca da autoralidade e reconhece o diretor por trás de tudo aquilo. Principalmente quando se tem um carimbo tão sólido quanto Quentin Tarantino. 

O leitor, neste caso espectador, sem dúvidas nota um andamento incomum na história, como se quem está contando quisesse brincar com as convenções e recursos que detém. Como se quisesse comunicar a todos que sabe muito bem o que está fazendo e tem arrojo para isso. 

Bem, é disso que se trata a arte, é quando alguém bate no peito e se atreve a expressar o que sente da melhor forma possível, plasticamente mesmo, para encantar, instigar e mostrar que tem domínio. Quando assistimos Bastardos Inglórios vislumbramos isso do início ao fim. Não apenas como um jeito diferente de se narrar, mas como alguém consegue embaralhar e estruturar ao mesmo tempo todos os elementos, inclusive apresentando dois lados sem qualquer ligação com maestria sem deixar a peteca cair.

 Este meu comentário não será apenas sobre o decorrer das cenas e como elas são funcionais na história junto aos personagens, mas também sobre um diretor que sabe se divertir e ligar os pontos para entregar um produto ímpar.

    A começar pelo oficial Hans Landa, um personagem que dignificou o arco da vilania. Já na primeira cena temos uma exibição do que há por vir, em um primeiro momento ele chega falando outro idioma e demonstra uma calmaria e uma gentileza incomuns para um coronel nazista. Porém com um ar de perigo iminente pairando à sua volta, ficamos com a sensação de que algo ruim pode acontecer a qualquer momento, o que é agravado por seu deboche quase velado em resposta ao desconforto dos demais. 

A angústia que provoca é tamanha que o camponês mal consegue controlar sua inquietude, deixando-o a ponto de gritar para ele ir embora. Sabemos assim que beira a tortura psicológica estar perto dele. A palavra que melhor o define é sadismo. Quando temos uma demonstração do que é realmente capaz, confirmamos que não apenas culto e debochado, mas também frio, cruel e bárbaro, de uma “passividade” bestial. 

    Ao longo da trama vemos cenas semelhantes a essa, como o reencontro com Shosanna, em que o teor é basicamente o mesmo, mas com um alívio no fim. Tudo isso para mostrar sua natureza e influência, vide seu posto hierárquico. 

São tantas camadas em um único personagem que seria muito fácil desviar a atenção de alguns aspectos e se ater a outros, proporcionando uma construção desequilibrada do mesmo. Seria, reforço. 

Entretanto, caríssimo leitor, estamos falando de Quentin Tarantino. A destreza e preocupação de montar um vilão verdadeiramente ameaçador é tanta que não resta dúvidas de sua implacabilidade, se tornando mais intimidador que o próprio Hitler, que aqui é representado como uma figura mais infantilizada e… mimada, eu diria.

 Como de costume em seus filmes, Tarantino desenvolve as peças através da conversa. “Como assim?”, perguntaria o leitor. Vos digo: os diálogos são enriquecidos de detalhes e prévias do que vai acontecer mais a frente, e também servem de pistas da índole do interlocutor. 

Não existe ponta solta ou papo furado aparente, tudo que é dialogado tem um motivo e uma função. Com Hans Landa não é diferente, se mensuramos o antagonista como um grande obstáculo, além da excelente atuação de Christoph Waltz, é graças a essa prática.  

    Mas o que seria de um grande vilão sem alguém para confrontá-lo? É aí que entram em cena o tenente Aldo Raine e Shosanna. Ambos com o objetivo de matar nazistas no cinema. Parece loucura, à primeira vista, aceitar que os dois tentem executar praticamente o mesmo plano simultaneamente. Mais loucura ainda é considerar que o diretor ousou entregar esses dois arcos sem qualquer ligação (a não ser o plano) sem decair em um ou outro. Ambos têm importância e complexidade. 

Lembre-se que ele brinca com a norma padrão da narrativa. Como o filme não se leva necessariamente a sério, a suspensão da descrença se torna cômoda, e a pressão de ser fidedigno aos fatos históricos desaparece. Isso dá carta branca para o autor usufruir de humor nos momentos propícios e modelar figuras históricas a seu gosto. 

Com tudo isso em mente, ele divide o conto em 5 capítulos, o que já não é muito comum por si só, para trabalhar as diferentes frentes de cada vez. Essa peculiaridade torna a obra ainda mais curiosa e denota uma organização mútua, onde o próprio cineasta põe em ordem suas idéias e não ficamos confusos com tantos personagens e tramas. 

Se por um lado é trabalhado um tom que cai, por vezes, o humor, como é o caso da campanha de Aldo Raine, do outro é costurada uma rota de vingança pessoal, onde nos deparamos com um período mais seco, o burlesco tem menos espaço e vemos que Shosanna ainda carrega o peso do assassinato de seus pais e nutre um revanchismo convicto.

Quanto mais os lados avançam, mais empolgado fica o espectador, já que o clímax reúne vilão e mocinhos em um só ambiente, nos fazendo questionar o que pode destruir o que foi planejado e prometido até então. Felizmente o nos deparamos com o que Tarantino faz de regra: muita violência, sangue, morte e destruição. Tudo muito bem arquitetado e feito para, pasme (ou não), nos satisfazer ao contemplarmos nazistas sendo abatidos em meio ao caos e seu próprio desespero.  

Se formos contar o que há de louvável iremos listar praticamente tudo, ao assistir vemos uma história quase despretensiosa, que não procura ser documental, mas uma interpretação sobre como seria se aquelas pessoas tivessem existido. 

Claro, os realizadores sabem que poderia ser de muito mau gosto zombar de atrocidades e sociedades devastadas pelos antagonistas, por isso prezam por reter momentos de alívio cômico e maior empolgação quando são os vilões sendo punidos. Sim, caro leitor, me refiro aos escalpes e ao momento em que conhecemos “O Urso Judeu”. 

Mais do que uma releitura, Bastardos Inglórios, é uma autêntica obra “Tarantinesca”. Reúne o que de melhor o cineasta consegue fazer, podendo ser comparada a uma boa música: possui um andamento adequado, sem pausas desnecessárias; duas histórias paralelas que, mesmo diferentes, são harmônicas por terem um mesmo tom e rimarem no fim; momentos de maior e menor intensidade, o que realça o valor de cada um; artistas muito afinados entre si, um verdadeiro conjunto e, claro, o próprio como um maestro talentosíssimo nos bastidores. 

Tal qual sabe como tudo e todos funcionam na peça e tem o poder de desconstruir conceitos convencionados para criar algo novo. Enfim, o gênio.

Curiosidades:

Inglourious Basterds contém um “erro” de ortografia, em Basterds existe um E ao invés da letra A. O diretor nunca revelou o motivo pois para ele perderia a graça;

O título deste filme em Portugal é “Sacanas Sem Lei”;

Leonardo DiCaprio foi cogitado para o papel do coronel Hans Landa (Christoph Waltz), mas por não ser de língua alemã foi logo descartado. Adam Sandler também foi cogitado para o filme, mas como o sargento Donny Donowitz (Eli Roth). Por conflitos de agenda acabou não dando sequência a ideia;

Apenas cerca de 40% do filme é falado em inglês, o restante fica em alemão, francês e italiano;

O capítulo 3 é o único que não se fala inglês em momento algum;

Tarantino quase desistiu do filme por não encontrar alguém que julgasse capaz de interpretar Hans Landa, já que além de ser poliglota, precisava ter o carisma a altura;

A atuação foi tão boa, que Christoph Waltz venceu a disputa pelo Oscar de melhor ator coadjuvante no ano seguinte;

O sargento Donny Donowitz tinha o nome de Anne Frank em seu bastão;

O próprio Quentin Tarantino aparece no longa, sendo o primeiro soldado nazista escalpelado e também são suas mãos que estrangulam Bridget von Hammersmark (Diane Kruger). Ele achou que Christoph Waltz não o faria corretamente (curiosamente ela desmaiou enquanto atuava);

O ator Michael Fassbender no filme é um infiltrado inglês que tenta a todo custo mascarar seu sotaque bretão para não ser descoberto. Porém ele realmente nasceu na Alemanha e então teve que falar como um inglês falando alemão com sotaque… inglês. 

Nota: 4,5/5


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