Um conflito de ideias que o vencedor é o público

 

Quando assistimos a uma adaptação de um livro para o cinema buscamos sempre encontrar fidedignidade. Quem há de nos culpar? Entretanto, meu caríssimo leitor, um livro é um livro, e um filme é um filme. Os recursos para capturar quem acompanha são diferentes. Em um livro nós contemplamos detalhes e conseguimos nos aprofundar mais nos personagens e exercitamos nossa imaginação de um jeito mais aprazível. Já em uma obra de cinema, existe o “quê” audiovisual: nossa atenção é chamada também pelos sons, pelos cenários, movimentos de câmera, enquadramentos e as performances dos atores. No caso de O Iluminado, vemos um “conflito” de interpretação entre Stephen King e Stanley Kubrick, dois contadores de histórias demasiadamente autorais que, porém, enxergam esta narrativa de maneira distinta. Mas o que sucede? O iluminado é o conto da perturbação e colapso mental de Jack Torrance enquanto trabalha como zelador em um hotel fechado por conta do período de fortes nevascas com sua mulher Wendy e seu filho Danny,  aproveitando o tempo para ascender na carreira de escritor. Kubrick não se ateve a alguns elementos do livro e resolveu entregar algo muito mais voltado para um terror psicológico do que propriamente sobrenatural, como King fez em sua versão. Fato é que esta é uma realização marcante e funciona com propriedade. Independentemente do livro, encontramos muita complexidade e artifícios bem empregados das minúcias ao arco principal para afirmar que esta é uma das melhores adaptações da história.


Desde o início já percebemos um distanciamento entre as obras. Por King, Jack é um homem correto e atencioso, mesmo possuindo um histórico de alcoolismo que arruinou sua carreira como professor e que degrada sua relação com a família. Na outra versão ele já parece transtornado e visivelmente instável, dando sinais de que falta apenas um empurrão para mergulhar de vez na loucura. Função que fica a cargo do Hotel Overlook, que já nos é apresentado como sede de um massacre indígena e palco de brutais assassinatos por parte do antigo zelador contra sua própria esposa e filhas. Sendo um local amaldiçoado e que instiga o que há de pior na pessoa, tornando-a refém de suas fraquezas morais. Assim, a tragédia é anunciada: Jack, cada dia mais frustrado pelo bloqueio criativo se torna irritadiço e violento, sucumbindo a sedução do hotel; Wendy, vendo o desequilíbrio do marido ganhar proporções destrutivas, se afunda na angústia e no medo por sua vida e de seu filho, que por sua vez é sensível a eventos sobrenaturais, recorrentemente contactando seres fantasmagóricos, nos mostrando a hostilidade do lugar, que é isolado e infestado de assombrações. Por fora ainda vemos Hallorann, outro “iluminado” como Danny que, por telepatia percebe que algo de ruim pode acontecer por lá, viaja de volta ao Overlook como fator surpresa e nossa maior esperança de resgate.


Prontamente, e graças a notável atuação de Jack Nicholson, testemunhamos que o hotel possui de vez o patriarca da família, usando seu alcoolismo e seu insucesso como combustíveis para agressividade, o faz perder o controle e se efetivar como perigo real. A bagagem das aparições (como as gêmeas, a mulher da banheira e o salão de festas lotado), a comunicação bloqueada e os planos abertos ressaltando o isolamento e desocupação do local, contribuem para a sensação de impotência. Diferentemente dos livros mais uma vez, vemos um Jack cego de raiva e implacável, não dando brechas para diálogos muito longos ou tentativas de reanimar seu “eu humano”, quando outrora veríamos, no mínimo, lapsos dessa brutalidade, oferecendo fuga à família. Nesse momento vemos uma das cenas mais emblemáticas do terror e quiçá do cinema: Jack, após golpear a porta com o machado dizendo "Here's Johnny!” enquanto Wendy grita desesperada do outro lado. Para agravar ainda mais a situação, Hallorann é morto por Jack, dando um banho de água fria em nossas esperanças de forma cruel. “Precoce!”, dirá o leitor… podemos dizer que sim, mas também podemos dizer “Acertado!”. Até então, não tínhamos uma demonstração de brutalidade impactante como essa. Kubrick nos tira o chão para aumentar a aflição da jornada final e engrandecer o clímax, que batia à porta.


Ao fim do filme, acompanhamos Wendy em busca de Danny pelo hotel, que é quando, pela primeira vez, ela pode ver os espíritos. Talvez por se alimentarem de todo aquele caos. Também vemos Jack perseguindo Danny pelo labirinto. Sem sucesso, morre congelado. É um final tenso que nos coloca com facilidade no lugar dos mocinhos. Sentimos medo com eles e nos importamos com seu destino. Mais uma vez ocorre uma mudança crucial: o final é absolutamente diferente do original, contrapondo até mesmo elementos da natureza. Se por um lado, Stephen King faz o hotel acabar em chamas junto com Jack, por Kubrick o mesmo simplesmente morre congelado labirinto adentro. Desde o início vemos um conflito de ideias entre os dois autores, desde a construção dos personagens de Jack e Wendy Torrance até o fechamento. Na prática, não existe uma dicotomia tão grosseira nas duas interpretações, mas caminhos ou tratamentos divergentes em alguns casos. O que não anula uma obra ou diminui o mérito de seus criadores, muito pelo contrário, abre espaço para novos pontos de vista, outras leituras. Agora, nobre leitor, caímos naquele velho “papo” de que cada indivíduo é único e possui uma bagagem cultural particular. E isso é verdade. Cada qual tem uma perspectiva e o poder de experimentar a mesma coisa com gostos completamente opostos. Mesmo que o filme tenha tido mais visibilidade do que o livro, certamente arrancou mais notoriedade para ele, e no final acabou sendo uma experiência positiva para ambos.


Curiosidades:


Stephen King chegou a escrever um roteiro para O Iluminado, prontamente rejeitado por Kubrick;


King reprovou o longa, alegando desvio narrativo e detonando atuações como a de Shelley Duvall e do próprio Jack Nicholson;


Danny Lloyd não sabia que estava atuando em um filme de terror, pois era muito novo e Stanley Kubrick o fez acreditar que era um filme de drama;


Parte dos atores não mantinham bom relacionamento com Kubrick, que perfeccionista mandava repetir cenas à exaustão. Um exemplo foi a cena da machadada no peito de Hallorann. Scatman Crothers, já com 70 anos na época mal aguentava as repetições, precisando Jack Nicholson intervir depois de dezenas de tentativas;


Shelley Duvall foi quem mais sofreu com Kubrick, chegando a  ter problemas psicológicos que ocasionaram perda de cabelo. Ele a humilhava e hostilizava com frequência, fazendo também repetir ao todo 127 vezes a cena em que ela sobe a escada com o bastão de basebol para afastar Jack;


“Here’s Johnny!” era um bordão muito conhecido de Ed McMahon no programa The Tonight Show - Starring Johnny Carson e Jack Nicholson usou como improviso. Foi bem difícil convencer Kubrick de deixar dessa forma no corte final;


Existem algumas teorias de quem e como foram escritas as páginas de “All work and no play makes Jack a dull boy”. Uma delas diz que Kubrick fez sua secretária escrever tudo sozinha, levando meses para terminar, a outra diz que o próprio escreveu tudo;


Como o filme foi gravado em um hotel real, sua direção pediu para que fosse alterado o número do quarto 217 para 237, com medo de ninguém mais se hospedar nele.


Nota: 4,5/5 (ótimo)


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